domingo, janeiro 30, 2005

Júlia

Está a morrer aquela que foi mais que minha mãe. Não posso chamar-lhe minha ama a não ser no sentido que me amou e eu a ela mais que a ninguém, que me criou desde o dia em que nasci, a mim, aos meus 3 irmãos, aos 9 netos do meu pai. Todos os dias, incansável, desde o primeiro ao último minuto. Ontem, a tarde ainda começava, o telefone tocou. A notícia tirou-me da cama, meteu-me no carro. Fui encontrá-la caída no mármore da cozinha, muito branca, cada vez mais magra, junto a uma poça de sangue. A minha mãe de criação a morrer.Fui junto com ela e os bombeiros. Soube que o respirar era estranho, trazia más novas e por mais que lhe falasse ela - pela primeira vez em 44 anos - não me conseguiu responder. Não sei se me ouviu: nessa altura, na corrida contra um tempo que já se pressentia no fim, e depois, na sala de reanimação, para onde regresso agora, e onde ela espera que a embolia sem retorno mate o que falta morrer. Mas espero que ela me tenha ouvido, porque não tive tempo para me despedir, porque não quero que viaje com medo, porque não quero que se julgue sozinha.
Choram 9 crianças, os nossos filhos. Não sabemos como consolá-los. A ela coube sempre essa missão. Não sei como a honraremos.

Hoje é uma manhã estranha. A cozinha está vazia. Não reconheço os odores. Pai e mãe parecem dois bonecos sem mestre e a casa imensa, onde ela gastou todo o seu amor. Desculpa tantas palavras. Não sei dizê-lo de outro modo. Daqui a nada sigo para o HFX. Nem sabemos onde ou a quem deixar os filhos: era sempre com ela que ficavam. Ninguém vai à escola.
Aí no serviço hão-de querer saber se era minha familiar. Não, não era. Uma menina que começou a servir aos 9 anos, criada de Sta Zita que uma mãe abusada por um senhor de Celorico de Basto largou nos braços de uma avó que a largou no mundo, é familiar de quem? Um dia, pelos seus 13 anos, foi servir para casa da minha avó materna, em Guimarães. Aos 22 a minha mãe casava e entre os linhos e as porcelanas do enxoval trazia com ela a Júlia, para o Porto. Meses depois nascia eu. A minha mãe adormecia e era a Júlia que me dava o primeiro de mil banhos, de mil beijos, de mil mimos. Foi com ela que aprendi a letra bonita que tenho, as receitas que sei, a bondade que procuro a cada dia...não me lembro de ter aprendido tanta importância com ninguém mais...e a grande lição de morrer de pé e de amar o próximo como se do próprio sangue...estou inconsolável. A ti escrevi menos por questões formais e mais por poder dizer-te assim as coisas. Não poderia rematar uma vida com uma frase...se perguntarem quem morreu diz que foi a minha mãe. Se quiserem que assine e confirme quem morreu, não foi ninguém. Justificarei a minha ausência como quiserem. Pouco me importa. Que mo digam. Não saio da beira dela, como ela nunca de ao pé de mim.
Depois, segunda, se tudo estiver arrumado na terra de nunca mais a ver, estarei aí, a trabalhar. Como quem cumpre um luto honrando quem nunca deixou de servir os outros.


Desculpa. Não consigo exprimir-me melhor.


Está a morrer a melhor parte de mim.

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