A Síndrome do Bolo-Rei
Espelho meu, espelho meu,
existe alguém
mais volúvel do que eu?
Exponho-me como carne ao gancho, bacalhau ao sol. Depois disto dito sou um homem morto. Ainda assim suspeitem-me: pode mais não ser que um aproveitamento vil da cena trágica da crucificação, ou da devota da penitência. Estratégias para conquistar o talho e evitar que me comam. Tão antigas como as dos falsos santos no concurso à pianha. Mas sei que depois de escrita, serei proscrita, (con)firmando-me na lista dos que ainda hesitavam em remeter-me ao index. Todavia, uma vez mais, previdência: circunspecto é o arrependimento dos que se entregam à imolação, exilados que venham a ser e de qualquer natureza o seu pecado, granjeiam a fama como seres de eleição, malgré tout.
Consola-me pensar que terei, porventura, alertado os incautos que, por ora, se encontram junto às minhas margens. E prefiro margens à imagem da costa, porque a primeira fica pronta a servir de caminho, paralela ao rio que os há-de levar e a outra supõe que haverá um dentro para além do fora, um carreirito para o interior de um território. Não há. Sou terra inóspita e inospitaleira.
À verdade então, à confissão:
Farto-me das coisas, das pessoas, dos animais, das disposições, das circunstâncias. E farto-me em proporção directa do quanto por elas me encanto.
Imaginem a estante envidraçada de uma confeitaria fina, repleta das mais distintas obras de pasteleiro criativo. Ou não necessariamente: troquem fina por vulgar, criativo por mecânico engripado e mal dormido. Para o efeito pretendido, não contam premissas muito precisas. A selecção ainda constitui para mim um verdadeiro desafio de descodificação (que prometo investigar).
A factos: de repente, eis-me a reparar no bolo-rei. Entre a dezena e tal de açucarados, aquele passa, por toque de mágica, a rei dos bolos. A seguir o esquema é simples e recorrente: durante um período contínuo de tempo (que varia entre a média e a longa duração, e em casos de qualidade verdadeiramente duvidosa pode limitar-se a curta) hei-de correr todos os dias a uma pastelaria (ou à mesma, verificando-se uma dupla e sobreposta eleição de bolo e casinha que o propõe o que, note-se, é caso mais raro) para satisfazer o imperativo e compulsivo impulso de comer a vitualha. Insubstituível, isento de qualquer defeito, acumulador de qualidades várias e únicas, o bolo-rei passa a comportar o sentido da minha vida. Não fosse a impropriedade da relação entre os sujeitos do exemplo, atrever-me-ia a qualificar de amorosa esta relação. E porque não, se não lhe falta nenhum dos condimentos?
Até aqui o quadro é comum, qualquer um se reconhece nele, bolo-rei à parte. Depois, um dia, qualquer dia, por uma razão, qualquer razão, o bolo-rei volta à prateleira dos seus congéneres. Nada de novo, dirão vocês, esvaiu-se a paixão, satisfez-se a gula. Pois bem, não é tão simples: o bolo que regressa à estante não reconquista o seu lugar de origem. Não é mais um bolo-rei. Não deixei apenas de o preferir aos outros. Passei a julgá-lo menor, cobri-o de defeitos e sempre que recordo a minha alucinada corrida às pastelarias pergunto-me, intrigada: como foi possível gostar assim de um bolo em tudo menor a tantos outros?Quando me confronto com ele, cara a cobertura, a reacção é mais grave ainda: não entendo como uma confecção tão comum pode ombrear com as outras expostas, do cheese-cake ao bolo de mel. O meu consumo excessivo fez o estrago: desgastou o bolo-rei até votá-lo a uma acção de despejo efectiva. Dificilmente volto a pedir que mo sirvam. E se o faço, como-o com a mesma distracção, o mesmo tédio e a mesma pressa com que se engole um vermute para enganar a tensão do encontro com o próximo bolo.
Reflecti longamente sobre esta minha pente funeste. Sempre tinha lido a questão de grandes amores perseguidos de imensos ódios como uma forma de equilíbrio de poderes, vista a questão em termos de relações internacionais; à luz de Herr Freud, julguei-a como uma tentativa de superação do trauma da transitoriedade da vida erótica: transferir para os outros a minha morte prevista ou, de forma mais agradável para o meu perfil, antecipar a morte prevista dos outros, matando-os.
Mas muitas perguntas ficavam em aberto: porquê o bolo-rei? Porquê naquele dia a escolha? Porquê naquele outro a rejeição? E porquê tanta e tão igual intensidade em comê-lo como em cuspi-lo?
Hoje julgo que descobri o mistério (thanks God it's Christmas!) do bolo-rei, do João, do cão do vizinha, da Antónia, da decoração ao gosto colonial, dos livros da Patrícia Highsmith, dos dadaístas, de Léo Ferré e de Bob Dylan (e não vos maço mais com o rol, que - como o de Leporello - não tem fim à vista): não foi deles que me cansei. Cansei-me de mim. Porque os escolhi, a cada momento, para que me devolvessem, das minhas imagens, a melhor. E foi essa imagem que me devolveram que depois já não me bastou. Tornou-se imperfeita, por ser falsa; ou por ser verdadeira, mas parcelar e tê-la eu decorado no entrementes.
Cuidado: ando há uns dias sem espelho. Sei que, a qualquer momento, qualquer ser pode cair na imprudência imponderável de me devolver uma imagem alternativa de mim.
Uma vez mais, dear friends, será o princípio do fim.
E, seja como for, fica por descobrir o mistério do amor.
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