quarta-feira, dezembro 15, 2004

O Natal do meu descontentamento


A vida devia vir acompanhada de um livrinho de reclamações. Se assim fosse, poupava-se o trabalho de andarmos por sítios de duvidoso e digital suporte, como este, a queixarmo-nos a torto e a direito das imperfeições humanas e, em um ou outro caso, a clamar pela justiça divina. Mas visto que a vida não contempla esse precioso anexo, Deus não ouve os ímpios como eu, e a gente não é do feitio de se calar, aqui fica mais um input para o rol.


Este foi, de novo, um ano de logros e malogros.

E no rescaldo das misérias do mundo, tenho comigo esta incómoda e incontornável consciência de mais um natal a que não deviamos ter direito. E uma indisfarçável aversão aos símbolos do poder: às mil lâmpadas que piscam nos pinheiros escandinavos, à combinação impecável das bolas de ouro e prata e azul, aos presentes vestidos de seda e lustro e rematados (como quem os recebe) pelos laçinhos da moda, às iguarias que hão-de constar das mesas longas onde sempre constam, entre bacarás e limoges e vrai champagne.

Mas tenho também uma incómoda aversão às imitações pobres desse poder mundano: às dezenas de lâmpadas que piscam umas, outras já não, no pinheiro manso de tão plástico, vendido nos continentes, já incluso com todos os enfeites de Taiwan, e entre os quais consta, invariavelmente, um anjinho que debota antes do dia de reis (antes debotasse a resignação!), à profusão pela profusão sobre todas as mesas e mesinhas que as casas foram acumulando (em vez da mesa grande que nunca chega) e que já de si estão acumuladas de gente e de bibelots. Para parecer mais o que se tem de menos. Para que se veja menos o que nunca se teve de mais.



Eu sei que depois há as crianças. Que o natal é para elas. E até posso honrar o esforço de luzes vesgas e embrulhos precários nas casas simples. E dizer que as crianças são belas.

Mas não no natal, ou não estas, tantas, que farejam as etiquetas e procuram, mais do que o seu nome, o nome dos outros e fazem já contas de cabeça ao que lhes caiu em sorte e medem a justiça pelo pacote. Troco-as por milhões de outras que pudessem ter essa coisa apenas que quiseram ter, muito e durante onze seguidos meses; troco-as por ver, num menino de uma coisa só, a alegria imune ao que outros tivessem, incompreendendo a desenfreada histeria do excesso. Um menino que perguntasse, atónito, aos outros: "Como é que vocês aguentaram esperar muito com muita força por tanta coisa se eu ia quase morrendo por esperar, assim, por uma só?Como se faz para se querer tanto tanto, se eu quis tanto ter só isto e não consigo imaginar poder querer tanto como isto outra coisa, mais uma só que seja?"


Eu que não sou simples e que, por isso, faço dupla questão de que o meu filho cresça para além do circuito do seu belo umbigo, com a consciência de um mundo que possa contar com ele, digo que este é um ano de olhar para o planisfério que colámos na parede e de ajoelhar diante das manchas maiores das zonas sem natais. Para descobrir o que é essencial, o que é lixo.

E de debruçar o corpo para fora de onde moramos e fazer um joguinho de adivinha. Qualquer coisa como: "Qual é a janela, qual é ela, do menino de uma coisa só que vive na casa vizinha?".

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