sábado, dezembro 11, 2004

O (Re)sentimento de uma Ocidental


A problemática do direito de ingerência decorre em mim de uma imposição do próprio objecto no processo de escolha do sujeito. Nenhum outro me tinha, antes, provocado o que me parece uma espécie de ensurdecimento de todos ecos socioculturais que, de uma forma ou outra, me têm guiado em outras incursões.
Em consequência deste efeito de ensurdecimento, o objecto impõe-se-me e impõe a sua perigosa natureza: obrigar-me a tentar enquadrá-lo no esquema das respostas compatíveis com a ética do pensamento contemporâneo (de uma) ocidental correndo o risco de, nesta aferição de compatibilidades, provocar a sua própria (minha) negação.



Entendo, assim, dever colocar a questão à prova em três níveis de análise:
Um primeiro nível, em que verifique em que campo do conhecimento poderia encontrar a raíz das razões de carácter humanístico e mesmo político (democrático) inerentes ao princípio deste direito;
Um segundo nível, no qual apure se existe (se pode existir) ou não uma razão pura que legitime eticamente um direito de ingerência (e, na sua forma excelente, um dever);
Um terceiro nível, onde averigue até que ponto a própria construção deste direito denota, ela mesma, um vício de pensamento ocidental.



«"…mas do seu sangue pedirei contas à sentinela…"Ezeq.XXXIII,6.



Primeiro Nível



No final das leituras de que me socorri para procurar resposta para a minha questão entendi que o princípio do direito de ingerência - e por maior força de razão o de dever de ingerência - colhe, claramente, no pensamento religioso judaico-cristão: de uma forma mais abstratizante no mandamento bíblico "Ama o próximo como a ti mesmo(…)", com uma fórmula mais específica (aliás, não por acaso citada por M.Bettati) no Evangelho de S. Lucas, no "aviso" "o que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos a mim o fareis", mas igualmente na proposta de acção que se lê em St. Agostinho quando este aponta a causa para os castigos que atingem tanto os bons como os maus e de que me permito a transcrição de um excerto que entendo precioso para a defesa do meu raciocínio:

"(…) Mas há culpa quando as pessoas que vivem de maneira diferente dos maus (…) são todavia indulgentes para com os pecados dos outros quando os deviam corrigir e exprobrar. Têm o cuidado de os não ofenderem com medo de por eles serem lesados nos bens de que usam (…). Não se trata apenas dos mais débeis (…) trata-se também dos que mantêm um teor de vida superior (…) mas se abstêm de que repreender os maus, com receio de que (…) ponham em perigo a sua fama ou segurança. (…) a sua integridade e reputação no caso de falharem no seu intento -, e isto não porque as considerem indispensáveis para o serviço de ensinarem os demais, mas sim em consequência daquela doentia fraqueza em que caem a língua e os juízos humanos quando se comprazem nas adulações e temem a opinião pública (…)" (St. Agostinho, pp121-123, A Cidade de Deus) (negrito nosso).

Assim, se as fontes religiosas consultadas confirmam a filiação da ingerência humanitária, com St. Agostinho e com o seu imperativo de acção (um dever de que o incumprimento constitui culpa) torna-se particularmente notória a inspiração que a doutrina cristã constitui para a construção da boa consciência do princípio político da ingerência.
Mas se, guiada por St. Agostinho, a acção de um bom cristão nada deve temer os reveses na Cidade de Deus, já na "cidade dos homens" as "sentinelas" dos Estados democráticos, os seus governos, não só não podem não temer despojadamente, como têm que - activamente - garantir a segurança dos cidadãos e auscultar e respeitar a sua voz que é a voz da opinião pública.


E assim é que a comunidade política internacional, designadamente na pessoa dos seus Estados democráticos, pressionada pelas ONG humanitárias, parece ver-se hoje estacionada numa encruzilhada de imperativos: não tendo como não aceitar o princípio humanitário do direito de ingerência (para salvaguarda dos direitos do Homem), sob pena de infirmar o seu próprio paradigma, vê-se a responder, desajeitadamente, à ética weberiana da convicção; não podendo alienar a sua natureza política e anárquica de comunidade de Estados soberanos, vê-se a cumprir os fins a que o exercício do poder a compele, escondendo nas razões humanitárias a vergonha (a exclusão) a que a votaria a opinião pública caso ousasse ostentar o princípio da ética da responsabilidade que lhe é própria.

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