segunda-feira, dezembro 13, 2004

O (Re)sentimento de uma Ocidental (2)


....Esta constatação situa-nos desde já nas contingências do segundo nível da nossa questão que reportava à possibilidade de uma razão pura da ingerência humanitária.

A resposta parece evidente: num mundo de interdependências cada vez mais profundas e generalizadas, onde o exercício de ingerência se opera mesmo aos mais ínfimos níveis (o título da obra de P.M.Defarges é, aqui, particularmente feliz pelo duplo sentido que a expressão francesa escolhida comporta: Un Monde d’Ingérences) a intervenção humanitária, exercida num contexto político por excelência, não saberia como ficar-lhe imune (confrontem-se os próprios efeitos políticos da tentativa de exercício de neutralidade da Cruz Vermelha Internacional durante a 2ª Guerra Mundial).

Este facto traduz-se, aliás, na longa odisseia, no complexo caminho - que Mário Bettati pormenorizadamente descreve - que o direito, agora em vigor, teve de fazer na Assembleia Geral, nas Comissões, nas Agências e nos corredores das Nações Unidas.

Mas traduz-se, também, na dificuldade de uma leitura única e inequívoca das próprias razões das acções de ingerência, das intervenções de terreno, aí onde os vários actores se entrecuzam em rede de malha tão fina quanto inextricável.

Aí onde a ilusão de uma comunidade universal choca com a sólida porosidade das fronteiras.
É então compreensível, num contexto não apenas político, mas sobretudo anárquico como o do terreno das Relações Internacionais, que as questões também elas se encadeiem:

-Será este novo direito de facto subsidiário legítimo dos direitos do Homem ou serão os direitos do Homem um pretexto para legitimar uma nova e necessária eficácia no propósito da manutenção da paz e da garantia da segurança internacional?

- Envolverá esse dictat onusiano, afinal e fundamentalmente, a protecção de um mundo de interesses eminentemente geoeconómicos que, parecendo os porta-estandartes dos valores humanitários e igualitários das sociedades ocidentais (porque instauram o princípio da liberdade), nelas comparticipam, de facto e mais razoavelmente, pela natureza users friendly do ambiente democrático?

Questões que se encadeiem num desenho que, de tão circular, parece destruir essa matriz de análise dos acontecimentos que tem permitido a compreensão histórica: a causa-efeito.
Multiplicadas as chaves interpretativas em cadeia, o resultado - absurdo, mas lógico - é então a não-resposta e, com ela, a impossibilidade de designar os responsáveis (ou, numa terminologia mais jurídica e sobretudo mais judaico-cristã, os culpados).


É nesta linha de pensamento que se inscreve a visão niilista de um Baudrillard, trazendo o mundo contemporâneo confinado às "reivindicações vitimais" e a um novo e perverso contrato social que se estabelece no espaço e pelo processo da própria democracia: a devolução ao indivíduo das responsabilidades do Estado.
Nesta busca de um "reconhecimento vitimal generalizado", reconhecem-se igualmente os efeitos secundários paradoxais da precária condição defargiana a que o mecanismo da ingerência - moderna ilusão da solidariedade? figura requintada da violação? - vota os que, entrando como heróis, permanecem (se não logo, logo depois,) como ocupantes e saem como desertores.
Mecanismos da ingerência, indiferentes aos processos de intenções, às justas causas ou aos propósitos altruístas.

Sob a sua tutela, o número par de vezes que Koushner saltou as fronteiras (em risco de vida pela vida de outros) não o fez menos refém dessa incontornável deterioração, nem mais eficazes os termos da Resolução nº688 de 5/4/91, ONU, que inaugurando o direito humanitário de intervenção, ficou muito aquém de o fazer entender-se como um imperativo universal, porque muito ainda subalternizado face ao primado das soberanias.


E num mundo sem responsáveis inequívocos, mas feito de responsabilidades ilimitadas, em cadeia; num mundo de sistemas de resposta automática, onde o poder, difundido até à exaustão, se encontra em parte incerta ou não se encontra já, que valor podem conter os valores e os textos jurídicos da humaníssima sociedade democrática ocidental?

Que valor, se não haverá como fazê-los cumprir (aos valores) se não pela força, não havendo mesmo, na maioria das vezes, força (de vontade política) para os fazer cumprir?

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial