quinta-feira, dezembro 23, 2004

Mater Dolorosa

Tenho uma grande constipação.
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do universo,
Zangam-nos contra a vida,
E fazem espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor,
O que fui outrora foi um desejo, partiu-se.
Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando…
Não estarei bem se não me deitar na cama,
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.
Excusez un peu…Que grande constipação física!
Preciso de verdade e de aspirinas.*


Tivesses tu experimentado, ó Álvaro, juntar a esta nossa grande constipação uma dor de dentes implicativa, predatória e fina e terias podido dizer comigo:
"Hoje somos verdadeiramente seres menores, precisados de um corpo alternativo. Um corpo feroz que nos devore a dor ainda que, de caminho, nos devora a nós. Nem a mais melíflua das mentiras, nem a mais pura morfina, fará da verdade que pediste, em pondo-se-lhe uma dor de dentes em cima, o que quer que seja. Aspirinas?Drosts brancos servidos de bandeja!".


*Ficções do Interlúdio/Álvaro de Campos

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