segunda-feira, maio 23, 2005

De Moças e Princesas

As casas vão-se perdendo, em morrendo as cabeças. Minhas avós, as irmãs delas, mulheres morenas, sérias e sábias que me fizeram entender os alinhavos com que é possível fazer um guarda-roupa digno de se sair à vida.
Vivi rodeada de um feminino intenso, nada dado a soluços e a desistências, sem desalinhos de alma e com certezas justas, apropriadas a dias difíceis de multiplicar os pães para serenar as bocas e ver frutificar os corpos. Poderiam elas, naquela azáfama, ter esquecido o mais, ter alegado que armas só em tempos de abastança merecem polimento, em outros não. Mas não: tiveram o engenho, a precisão, a perspicácia de um estratega: nunca deixar de fora da parca mesa a poesia, essa sobremesa com que se adoça, em guerra, a vida e depois, dess'hora avante, quaisquer que venham a ser os veredictos da economia.
Guardo, de entre muitas, uma imagem sublime, luz que acendo em cada encruzilhada: tu a recitares, par coeur, à mesa do pequeno almoço (pouco depois haveriam de suspender-te a vida), diante de um prato branco decorado a laranja firida, alegria e a uma preguiça bem merecida, a moça de chita.
Hoje entendo que, ao ouvir-te, tive diante de mim aquela que dizias e em ti todas as tuas irmãs.
Hoje sei que, se em ouvir-te, havia em mim uma Ansiedade que crescia, era por saber que era eu a Princesa que não queria (ser).


Rústica

Ser a moça mais linda do povoado,
Pisar, sempre contente, o mesmo trilho,
Ver descer sobre o ninho aconchegado
A benção do Senhor em cada filho.

Um vestido de chita bem lavado,
cheirando a alfazema e a tomilho...
Com o luar matar a sede ao gado,
Dar às pombas o sol num grão de milho...

Ser pura como a água da cisterna,
Ter confiança numa vida eterna
Quando descer à "Terra da verdade"...

Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!
Dou por elas meu trono de Princesa,
E todos os meus Reinos de Ansiedade.


Florbela Espanca