quinta-feira, novembro 17, 2005

O que Fazemos dos Sonhos que Temos - I. Gavião...


...Enquanto Criança

Na 1ª caixa o rapazinho está sereno, mas sereno de sério. Tem os olhos rasgados e parece não querer perder pitada do mundo.
Para se proteger dele.
Para o compreender.
Para o dominar.
Segura, entre as mãos, uns saquinhos de terra que a mãe coseu para ele.
Quando fico tenso, aperta-os tanto que desaperecem no recôndito das suas mãos pequenas; quando está feliz, atira-os ao ar e fica a vê-los subir e descer, subir e descer, subir e descer, como chuva de pedra, granizos.
A seguir, cheira-os muito, como se procurasse qualquer coisa de que eles fossem indício ou destroço.

E adormece a inalar a terra que a mãe lhe deu.

- Quando for grande quero deixar este bairro de janelas, jaulas (Estás a vê-la?Qual?Aquela ali, a terceira da sua segunda fila, a do prédio amarelo?), quero voltar a ter uma casa onde possa bater ao vidro, abrir a janela e saltar a terreiro, pisar o chão e deixar lá o peso na pegada. Uma casa horizontal como o horizonte. Um jardim que não seja da Junta, que não seja jardim, que não tenha relva de não pisar e cães de não cagar e laguinhos de não pescar, de não cuspir, murinhos de não saltar, desenhados por arquitectos muito municipalizados, muito engomados. Quero ver toupeiras, cobras, louva-a-deuses, gafanhotos canhotos, osgas nojentas, formigas magras e assassinas. Não quero moscas, moscardos, aranhas de bolso, minhocas maricas e sapos que sabem explodir na mão de artistas e lagartixas de falsos rabos que crescem outra e outra vez e que não mudam nunca, que não morrem nunca.

O pai não está. Nunca está. Ele é o mais velho e (a mãe diz que ele) é o homem da família, o (seu) companheiro.

Quando pára de bulir, a mãe é a mãe e ele volta a ser pequeno outra vez e o medo pára. Mas isso só acontece pela noite. Ela conta-lhe histórias velhas que dão sono é mesmo por isso que ela lhas conta. Para isso e para ver os três filhos juntos e ficar cheia de si: ter sido capaz de fazer três obras de arte, logo ela que não vale nada. Para isso e para conseguir dormir também ela depois e sonhar o que sonhava antes do mundo começar a diminuir à sua frente, insidiosa e inexoravelmente.

O Gavião tem uma grande responsabilidade pela frente e um desejo extemporâneo: voltar atrás.

O Bosque - V. Predilecta Paisagem


Plácido, o Plátano, há-de lembrar a quem ouse
como as mãos, por vezes, se assemelham a folhas
douradas em sendo Outono, sobre a terra em repouso
ou a cachos de cabelos de meninas louras.

Frondosa existência que lembrará a juventude
e onde a juventude se esconderá para crescer
rapidamente como esta árvore a que sobe
para combinar os sonhos e declarar que nunca morre
o Grito, essa vontade imperiosa de viver!

Mas, se por discreto acaso algum coração mais frágil
se vier estender simplesmente na sua margem
e, na sua sombra, fizer versos,
ainda assim serão da juventude os gestos
e, plácido, o Plátano, sua predilecta paisagem.

O Bosque - IV. Figura de uma Mãe de Sombra


Promete, Cipreste, que quando fores maior,
Disfarçarás a árvore hermética que és
E deixarás que brinque, que ria, que dance a teus pés
Toda a criança seja de que idade for.

Promete que, em vez de um círio negro dirigido aos céus
Que implora, erecto, pela salvação dos bons, pelo erro dos ateus,
A tua copa certa e a tua forma geométrica
Terão só as linhas curiosas de um cilindro, o aspecto de um palhaço,
o ar de uma boneca...

Promete, Cipreste, que ao olhar para ti, para o teu porte austero,
Ninguém verá, por este singelo jardim,
As formas silenciosas de um frio cemitério
Ou a figura de um mãe de sombra ou de um pai severo
A olhar do alto de uma tristeza sem fim.

Ciprestre, tens de prometer
Que cada pedaço teu fará renascer
A quem para ti olhar,
Em cada coração de menino, coração de rapaz,
A esperança toda de que fores capaz.

Tens de o fazer, Cipreste,
Ainda que a tenhas de inventar.

Por ser esta a razão porque para aqui vieste,
Por ser esta a tua missão neste lugar.

O Bosque - III. Verdes corações de folha


Dizem que quando crescer não serei
Tanto quanto as outras,
Árvores loucas, de porte imenso.
Mas sei que serei de um encanto intenso
E que, como eu, Olaia, haverá poucas.

Ainda não trarei vestido o meu vestido,
Tecido de verdes corações de folha
E, ainda assim, já neste jardim
Como em qualquer rua,
Hei-de posar - ousada - em minha pele castanha e nua
Enquanto um luxurioso manto, bordado só a flores, cairá sobre mim.

Lendas antigas
Falam de um Judas
Que usou meus ramos por razões obscuras
E assim morreu.
Mas mais forte que a morte que a história transporta
É esta minha presença junto a cada porta
E ser dos vossos lares a mais fiel memória.
O mais forte é ser eu.

O Bosque - II. Uma promessa e alguns matizes


Sou hoje, apenas, uma promessa e alguns matizes
daquilo que, um dia, será o meu corpo inteiro.
Sou, agora, quase só raízes
e fragilíssimas ramagens
que tremem ao mais leve sopro de Janeiro.

Mas sendo amanhã, eu serei árvore
e hão-de, em minha sombra, agasalhar-se
os segredos das crianças, das tímidas e das vorazes,
e os beijos de lábios-romãs ou pálidos mármores
de raparigas e rapazes.

Em minha sombra, porque me chamo Tília,
haverá um lugar tão largo, tão sossegado,
que sob mim se servirá o chá amarelado,
nas tardes de domingo a toda uma família.

Fábula Surrealista


Entrei no meio-dia e vi a Girafa
num autocarro com um chapéu
que, muito incomodado, tinha por mal deixado
a cabeça ao léu
e repetia em série, para algum Veado:
- Quanto mais fino mais desatino!
- Quanto mais fino mais desatino!!!

E a Girafa também, não menos alterada,
retorquia, a pobre, quase esmigalhada, para o Canguru
que mal a via enquanto a pisava, a olho nu,
(a pobre coitada!):

- Se houvesse brio,
ou um lugar vazio,
não me tratava assim,
não lhe admitia tal, seu grande animal!

E esticando o pescoço,
a garbosa Bicha, reparou que sim...
Num último esforço,
esgueirando-se ágil,
ainda meia frágil,
- mas bastante fula! -
sentou-se,
num ápice,
no dorso rogoso
da patética Mula.

Passei do meio dia para as horas seguintes
e revi a Girafa em longas demoras
escutando a Raposa a falar-lhe da pinta
e do lugar dela,
horas e horas...

Moral desta história que já mais que basta:
Se um autocarro assenta mal num animal,
pior assenta, nesta história pobre, o mesmo autocarro num qualquer snob.