O que Fazemos dos Sonhos que Temos - I. Gavião...
Na 1ª caixa o rapazinho está sereno, mas sereno de sério. Tem os olhos rasgados e parece não querer perder pitada do mundo.
Para se proteger dele.
Para o compreender.
Para o dominar.
Segura, entre as mãos, uns saquinhos de terra que a mãe coseu para ele.
Quando fico tenso, aperta-os tanto que desaperecem no recôndito das suas mãos pequenas; quando está feliz, atira-os ao ar e fica a vê-los subir e descer, subir e descer, subir e descer, como chuva de pedra, granizos.
A seguir, cheira-os muito, como se procurasse qualquer coisa de que eles fossem indício ou destroço.
E adormece a inalar a terra que a mãe lhe deu.
- Quando for grande quero deixar este bairro de janelas, jaulas (Estás a vê-la?Qual?Aquela ali, a terceira da sua segunda fila, a do prédio amarelo?), quero voltar a ter uma casa onde possa bater ao vidro, abrir a janela e saltar a terreiro, pisar o chão e deixar lá o peso na pegada. Uma casa horizontal como o horizonte. Um jardim que não seja da Junta, que não seja jardim, que não tenha relva de não pisar e cães de não cagar e laguinhos de não pescar, de não cuspir, murinhos de não saltar, desenhados por arquitectos muito municipalizados, muito engomados. Quero ver toupeiras, cobras, louva-a-deuses, gafanhotos canhotos, osgas nojentas, formigas magras e assassinas. Não quero moscas, moscardos, aranhas de bolso, minhocas maricas e sapos que sabem explodir na mão de artistas e lagartixas de falsos rabos que crescem outra e outra vez e que não mudam nunca, que não morrem nunca.
O pai não está. Nunca está. Ele é o mais velho e (a mãe diz que ele) é o homem da família, o (seu) companheiro.
Quando pára de bulir, a mãe é a mãe e ele volta a ser pequeno outra vez e o medo pára. Mas isso só acontece pela noite. Ela conta-lhe histórias velhas que dão sono é mesmo por isso que ela lhas conta. Para isso e para ver os três filhos juntos e ficar cheia de si: ter sido capaz de fazer três obras de arte, logo ela que não vale nada. Para isso e para conseguir dormir também ela depois e sonhar o que sonhava antes do mundo começar a diminuir à sua frente, insidiosa e inexoravelmente.
O Gavião tem uma grande responsabilidade pela frente e um desejo extemporâneo: voltar atrás.