sexta-feira, abril 15, 2005

Em Nome do Filho

Amanhã não vou à escola. Fecho os olhos até ter febre e não vou. Tudo porque a minha mãe tem faltado às minhas noites, anda por fora, não sei o que faz. A culpa é minha, eu sei. Devo ter feito alguma coisa terrível e ela deixou de gostar de mim. Não me importo de lhe pedir desculpa, mas tenho um problema: se ela me perguntar "porquê?" - como quando quer ver se o meu "sim" à lição vem da sorte ou do saber - não me vou lembrar de nada. Porque não consigo lembrar-me de nada de realmente terrível. Será porque sou feio? Porque não lavo os dentes há mais ou menos dois dias? Ela sabe sempre se sim, se não, porque me cheira. Gosto muito quando a minha mãe me cheira.
O melhor é não lhe pedir desculpa. Vai achar-me piegas, vai perceber que tenho medo quando ela não está e faz escuro lá fora e tudo fica sem sentido. Vai perceber que as saudades são muito maiores que a minha coragem e que a minha vontade de crescer.
A minha mãe não é muito meiga, fala alto, quer tudo no sítio e perde horas ao telefone ou então a ler. Até agora não vi nenhum mal nisso. A minha mãe é a minha mãe e eu conseguia sentir o amor dela para além dos barulhos e das ordens.
O pior é este vazio agora. É por isso que tenho lavado os dentes todos os dias , limpei o pó ao meu quarto, arrumei os livros e a pasta, mudo de meias sempre e como, até ao fundo da taça, os cereais da manhã. Porque a minha mãe não está, eu faço de conta que sim obedecendo-lhe em tudo. Sei que alguém há-de contar-lhe as minhas façanhas, lembrar-lhe como eu sou ainda o seu filho especial. Talvez o pai, mas não sei. O pai anda triste. A mãe tem muitos amigos, diz ele, mas eu duvido que seja por isso. Acho que a mãe encontrou um amigo diferente e já não gosta de nós. Uma noite trouxe-o cá a casa. O pai não estava, mas sabia. Ele é simpático. Fala comigo e ajuda-me nas coisas, mas eu não posso dizer que gosto dele. Não gosto dele! Outro dia também me levou a passear. Não quero. O meu pai é o meu pai e a minha mãe tem estado fora, muito tempo. Tive tanto medo que ele nos roubasse a mãe que lhe perguntei se era divorciado. (Que lata!) Não é! Que alívio! Agora volto a pensar na resposta que ele me deu e também não compreendo porque está em minha casa e não na dele.
Naquela vez, as dez horas, levantei-me e disse:
-"São dez horas. Vou-me deitar. Boa noite".
A minha mãe ficou muito orgulhosa. Não sei se por mim, se porque o amigo dela comentou que eu era muito cumpridor. Não sou. Estava a fingir. Só queria mesmo que a minha mãe percebesse que eu posso ser tudo o que ela quiser...
Hoje mal a vi. Amanhã não vou mesmo à escola. Vou ter muita febre. Quando adoeço eu sei o que acontece: a minha mãe fica. E eu faço tudo - será que ela percebe? - para a ter junto a mim.

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Laranjas Fumadas

O laranjal da nossa avó. Um aroma que nos agarrava ao riso e aos troncos. Não havia modo de nos transtornarem as tardes, de tal modo eramos felizes e as nossas mãos traziam os frutos agarrados.
O cachimbo da nossa avó. A outra. Um odor sério e literário que se compunha de histórias de reis. Uma efabulação criteriosa e cáustica de cada coroa. Aquilino era o autor mais visitado. Nós eramos outra vez felizes e cresciamos à margem das mágoas.
Depois veio a morte e elas morreram.
Vendeu-se o laranjal e apagou-se o cachimbo.
Perderam-se as cabeças e tudo parecia tender a desmoronar-se. Mas não.
Pobres são os que herdaram trapos e ouros, terras e cobres.
Nós vivemos num mundo de frutas e histórias tecido pela voz de duas mulheres que são, ainda hoje, tidas por fabulosas.

segunda-feira, abril 11, 2005

Anna Akhmátova (2)

"Along the hard crust of deep snows,
To the secret, white house of yours,
So gentle and quiet – we both
Are walking, in silence half-lost.
And sweeter than all songs, sung ever,
Are this dreams, becoming the truth,
Entwined twigs’ a-nodding with favor,
The light ring of your silver spurs..."

Anna Akhmátova

"Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor-
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição...
Agora compreendes por que já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração. "

(1915)