sexta-feira, dezembro 03, 2004

Abissus abissum invocat


Andam por aí poetas à solta. Ou será só a solidão a servir-se das letras?
Encontrei hoje um no café do bairro. Por sinal trajado de vestes vulgares, cabelo de senhora que não pinta unhas, mas que também as não corta à medida do ofício.
O poeta falava desmesuradamente. Para o dono da loja e para toda a gente.De nada empolgante e não falava em verso. Acho que fui intersectada pela verborreia. Ou pela alegria? Sei que às tantas era eu que sorria, inadvertidamente. Foi quanto bastou para me enredar: a conversa virou a cabeça para mim. Quem me mandou concordar que azedo não é ácido? E aventar que, provavelmente, saberia a senhora mais de química do que eu, que baseava a minha certeza em pouco menos do que uma mui frágil convicção de língua? Mas o meu poeta não se comprometeu: era um simples esteta, graças aos mestres e ao bom exemplo que Deus lhe deu. Mais uma herança de pai e outra de avô e eis Florbela Espanca, a predilecta. Foi questão de segundos para chegar ao poeta. De um ouvido ouvi-a, do outro era o café que persistia. E agora? O poeta aproxima-se, vejo-lhe a saliva e a língua que se enrola em versos, desmedida...olhos que lampejam. Estou perdida! Que faço eu disto? Cumprimento o dom, enquanto, em segredo, entristeço e meço o risco. Já decidi: o meu braço direito estende-se e afasta-a. Sou eu que desisto; a solidão que alastra. E a minha voz que diz, à senhora em chamas, que gostei de a ouvir, que ela é um de nós. Que mentira atroz! Mais valia o sangue a descer-me às pernas e a dar conta exacta da vontade de fugir.
Mas compreendam-me: sai um simples à rua para fugir das rimas, contrabalançar a neura com um virar de esquinas, com o ver os plátanos e as palmeiras e um trocar os versos por umas quantas asneiras e andam por aí à solta poetas perdidos que me deixam louca. Eu disse poetas? É só a solidão a servir-se das letras.

quarta-feira, dezembro 01, 2004

Questões Retóricas

A perspectiva?O ponto de vista? A objectividade é um estilhaço no braço de um indigente sem ninguém que o assista, obviamente.
- E a liberdade retida na implicação da escolha?
- Um alfinete apontado a uma bolha.Nula! Liberdade seria não ter a escolha à perna, como uma coleira, como uma garçonnete.Poder responder-lhe quando nos perguntasse se queriamos salmão ou bifetec, grelhado ou flambé, "vous le voulez déjà ou un petit peu après?": QUERO TUDO!
- Mas, e a nossa memória?
- Ora, ora, un petit carnet de secretário pulha que junta o mais valioso e o deita fora.
- Cada um não é mais do que a sua medida, vejamos...e é nisso que nos destrinçamos.
- Fantástico! Somos segmentados, relativos, somos socializados e comedidos, somos sindicalizados e alfabetizados e civilizados e ainda por cima (pasme-se!) estamos muito agradecidos. Como sacos de plástico num mundo de gastos desmedidos.
- Mas somos únicos e temos uma alma e um corpo anexo e, enfim, por débil que seja, poder de decisão e gosto pelo sexo.
- Um corpo que se felicitasse por ter trocado os braços e as pernas e toda a sua parte sensível- da qual saliento a boca, para não descer de nível - por um par de umbigos e dois charutos. Que boa troca! Que grandres burros!
- Mas somos solidários, não? E somos tolerantes, não somos arbitrários, nem deselegantes.Admitimos que nem sempre temos razão....
- Ah, pois sim, pois não.E somos infelizes de sermos corteses, porque o somos só, na maioria das vezes, dada a condição, a conta e a medida. Deixa-te de retóricas! Não somos mais que funcionários públicos da vida.

terça-feira, novembro 30, 2004

Obrigada, Senhor Presidente!

O povo começava a pensar que o senhor não existia. ..O povo tem destas coisas, compreenda, quando a seca se arrasta e não há modo de chover. A populaça duvida da existência de Deus.
Já fazia tempo que a legolândia se tinha instalado neste pedaço retalhado de terras.
Até a legolândia tem os seus direitos, conviemos contrafeitos, tratando-se de um Estado de Direito.
Compreendemos isso, senhor presidente.
Apesar de ninguém poder garantir que não há compreensões difíceis de digerir.
Mas, enfim, democratie oblige, e assim fomos sobrevivendo, na certeza de que, aos primeiros ventos, com o chegar das primeiras chuvadas e de um frio efectivo, permanente e rijo , as peçazitas haveriam de dar de si, a casinha haveria de cair e o senhor presidente faria o que tinha a fazer.
Afinal foi bem mais simples: os rapazes brincaram até se cansarem uns dos outros.Depois zangaram-se, é claro. Os rapazes são mesmo assim...até se fazerem homens, todos sabemos que eles não são capazes de responder pelo Estado...das coisas.
Ainda bem: com eles a atirarem-se as peças da legolândia poupou-se, em muito, o trabalho do senhor presidente e mais uma tarefa a esse grande general....o Inverno mal chegou, e eles já estão ao relento!
Mesmo assim, obrigada Senhor Presidente!

O Homem-Sombra/Parte 2

Shshshshshshshsh!!!que há uma mulher que quase dorme, as pálpebras indecisas entre as escandalosas propostas da noite e o cântico milenar do sonho.
Sobre ela, contra a luz que se perde acesa para nada, debruça-se agora uma sombra que mal lhe beija a testa.
A mulher sente-a.
"Só mais um suspiro para recompor o tempo" - pensa que pensa - "para transferir os mundos e para que a minha alma decida."
No chão ficou, em página incorrecta, a última linha que leu, um aperitivo para o que se segue.
Uma sombra agarra o livro, protege a página, apaga a luz.
Há agora uma mulher que dorme à sombra.

Quem, como ela, inventado para correr os dias a fio, atraído pela multidão que atrai, rarefeito pelo seu próprio tecido de luz inquieta, quem assim poderia sobreviver sem uma sombra emprestada?
E que sombra se emprestaria com este absoluto, se não amasse em quem dorme o que mais ninguém suspeita em quem luz?
Quem poderia luzir assim se uma sombra não acautelasse, a cada segundo, as ameaças ao seu brilho?
Amai, pois, (quaisquer que sejam) os vossos heróis. A eles devemos a nossa visibilidade.

Há um homem que nunca dorme, atento, junto a uma mulher sem sombra.

segunda-feira, novembro 29, 2004

Exactamente!


O Homem-Sombra é o meu herói preferido.
Não humilha, como o Super-Homem, as mangueirinhas dos bombeiros que, vá-se lá saber porquê, têm a morte a gravilhar-lhes as funções;
Não atrapalha o trânsito como o Batman, com um bólide que só sai no cache-cache da noite e que - a tanto turbo - bem podia comportar um acessório de asinhas (satisfazendo com mais propriedade o ângulo de visão das garotas e dos robins, que preferem mesmo olhar para as estrelas);
Não (se) enreda (n)as paredes como o Homem-Aranha para desmultiplicar o corpo pela cidade dos vilões e que se fica (o caixa d'óculos!) por tartamudear um "gosto de ti, rapariga!" em vez de, com tanto artefacto, trepar por ela acima.
O Homem-Sombra tem essa qualidade que os outros e nós, palhaços de circo e vamps de néons, nunca poderemos sequer (s)ombrear: o gajo existe!!!!
Nunca o vi nessa redundância neurasténica de se inventar e reinventar todos os dias.
Quando se despe (pasmem: o gajo despe-se!) só tem mesmo um corpo; e quando fala só fala por ele uma alma; e se os desejos são mais do que muitos, quando deseja o cabrão põe-nos na ordem e manda que avancem, um de cada vez.
O meu herói preferido é o Homem-Sombra.
Nenhum é tão luminoso como ele.
Exactamente.

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Tout Court

Deixa que toque o requiem.
Não procures nenhuma outra música que possa induzir-nos à alegria, porque nós não sabemos o que isso seja.
Confundimo-la com este estado eufórico com que tentamos desentediar-nos do mundo.
A alegria, se o fosse, rodaria sobre o caule a cabeça
sempre e só à procura do sol.
E, caindo a noite, dormiria.
Nós?
Temos duas pernas em cada tronco que uma na outra se ensarilham, sentadas, e que só se desenlaçam para partir.
Mais nada.
E caindo a noite, como agora, desdobram-se numa insónia sem sentido.
Podes mudar o disco.
Mantém-me só no mesmo registo.
Quero-me lúcida como se a morte fosse agora mesmo e me mandasse que levasse comigo ("vite, vite!") uma mala leve e dentro dela o mais imprescindível de mim.
E me dissesse num francês que tão bem contradiz a solidez de um túmulo:

Chère madame, veuillez laisser sur terre vos amis éphémeres.
Votre vanité aussi, madame, elle ne vous est plus nécéssaire.
Quant à vos chants d'oiseaux et à votre inquiétude,
se serait ridicule dans un lieu si lugubre.
Calmez-vous, madame, faite pas cette mine:
il ne vous faut que trouver un petit peu d'estime.

Boa noite.

domingo, novembro 28, 2004

Ad Nauseam...

"Entre le oui et le non, entre le pour et le contre,
il y a d'immenses espaces souterrains
où le plus menacé des hommes
pourrait vivre en paix"
M. Yourcenard
Entro numa sala de cinema à procura de viver uma alternativa à minha própria geografia, uma variante à circularidade dos meus pensamentos. Vou sozinha. É importante escolher horas extremas, longe das turbas e dos cultos: o mais tarde na manhã, portanto. Raramente consigo a solidão total.Há sempre meia dúzia de criaturas com não sei que peregrinas razões para não estarem ainda a dormir ou já a trabalhar. O importante é que permaneçam em silêncio para que esqueça que existem e com eles a sala de cinema, o filme enquanto tal e eu. Depois, depois basta que se apaguem as luzes e as fichas técnicas. É então que me sirvo de uma das personagens ou de um vazio de deus que assiste à narrativa das suas criaturas.
Quando saio há sempre o choque de descobrir que continuo aqui. São os odores que me agarram primeiro, o cheiro forte a café. Logo a seguir as luzes apontam ao meu corpo e eu dou conta que caminho sobre pernas.Mas o pior são as vozes, a desarticulação dos sons, uma espécie de onda que trouxesse consigo restos de peixes e crustáceos, algas velhas e sórdidos resíduos humanos largados na aflição da pressa. Não entendo o guião.Não destrinço as personagens.
Somos todos figurantes.