Abissus abissum invocat
Encontrei hoje um no café do bairro. Por sinal trajado de vestes vulgares, cabelo de senhora que não pinta unhas, mas que também as não corta à medida do ofício.
O poeta falava desmesuradamente. Para o dono da loja e para toda a gente.De nada empolgante e não falava em verso. Acho que fui intersectada pela verborreia. Ou pela alegria? Sei que às tantas era eu que sorria, inadvertidamente. Foi quanto bastou para me enredar: a conversa virou a cabeça para mim. Quem me mandou concordar que azedo não é ácido? E aventar que, provavelmente, saberia a senhora mais de química do que eu, que baseava a minha certeza em pouco menos do que uma mui frágil convicção de língua? Mas o meu poeta não se comprometeu: era um simples esteta, graças aos mestres e ao bom exemplo que Deus lhe deu. Mais uma herança de pai e outra de avô e eis Florbela Espanca, a predilecta. Foi questão de segundos para chegar ao poeta. De um ouvido ouvi-a, do outro era o café que persistia. E agora? O poeta aproxima-se, vejo-lhe a saliva e a língua que se enrola em versos, desmedida...olhos que lampejam. Estou perdida! Que faço eu disto? Cumprimento o dom, enquanto, em segredo, entristeço e meço o risco. Já decidi: o meu braço direito estende-se e afasta-a. Sou eu que desisto; a solidão que alastra. E a minha voz que diz, à senhora em chamas, que gostei de a ouvir, que ela é um de nós. Que mentira atroz! Mais valia o sangue a descer-me às pernas e a dar conta exacta da vontade de fugir.
Mas compreendam-me: sai um simples à rua para fugir das rimas, contrabalançar a neura com um virar de esquinas, com o ver os plátanos e as palmeiras e um trocar os versos por umas quantas asneiras e andam por aí à solta poetas perdidos que me deixam louca. Eu disse poetas? É só a solidão a servir-se das letras.