quinta-feira, dezembro 30, 2004

Coisas do Diabo


"Ser demónio é uma grande responsabilidade (...). Um espírito em evolução precisa de atravessar todos os horrores inimagináveis das trevas antes de alcançar a iluminação. Não há outro caminho para chegar à luz além do da escuridão. A única forma de temperar uma alma é através do sofrimento e da dor. Não há forma de evitar este sofrimento ao ser humano. Também não é possível dar-lhe lições por escrito. A alma humana é muito néscia e não percebe enquanto não vive as experiências na sua própria carne. Só quando processa os conhecimentos dentro do corpo é que os pode adquirir(...). Não há forma de os seres humanos aceitarem um raciocínio a priori. Têm de vivê-lo plenamente. E quem lhes proporciona essas experiências? Os Anjos da Guarda? Não, senhor. Nós, os Demónios. Graças ao nosso trabalho, o homem sofre. Graças às provas que lhes colocamos, ele pode evoluir" Laura Esquível (A Lei do Amor)

Pontos de Fuga


Já é noite outra vez. Noite de assalto, como é próprio do Inverno. As novelas seguem-se às novelas. Com o frio e o destempero da alma não há alternativas de fuga. Minto: há sempre os lençóis brancos e os policiais da P.D. James.

A lição de Montalbán


Fazem-me companhia poetas (mas não como os amigos, que me deram razão para os escolher, obras completas).

Escuto-os, porque são breves, já não sabem gramática e ardem depressa.

Cartografia


De todas as cidades, esta é a mais exacta. Trouxe-a num fim de dia, inexorável, dentro de um vestido de areia, onde a preservo intacta.

Tenho espelhos nos olhos e trago os sonhos soltos. E se, amanhã, visitar os edifícios todos e dormir serena na casa dos outros, será em gesto simples de meter as mãos aos bolsos.

Abstract


Breve é o dia e a recolha dos jornais resume toda uma noite. Trago aceso o lume para que me diga as horas. O fogo tem isso: uma morna precisão matemática.

De_Missionário


Cheguei tarde que é como quem diz vim da terra dos filhos pródigos, dos geniais bastardos, dos mafarricos meigos e magros, de certos heróis acanhados e de bichos bravos. Mas vim. Para rezar a história dos fracos.

Rosarum, rosis, rosis


Rosa, rosa, rosam

O prazer vive 8 casas acima da dor. De permeio, à porta das outras, estacionamos, no seu vagar, todos os dias que nos sobram. E aos quais não damos nome próprio.
Por isso há quem suspenda a escrita entre a primeira e a oitava casas. Porque o tédio tolhe as palavras como o sono a vida à mulher que espera, o amor ou guerra.


Rosae, rosae, rosa


É destempo. Risca da agenda antiga os amigos perdidos e os passageiros de outras viagens; faz e refaz listas de víveres absurdos; compra acessórios para o corpo futuro; reconhece a importância da ordem alfabética e da higiene profunda e obsessiva; procura nos recantos da casa indícios de desleixos vários e elimina-os a aguarrás; reposiciona, um a um, todos os objectos de superfície que não triturou; depois, relê os clássicos com a compostura e o sentido da decência e do dever de uma colegial impoluta e adormece, exausta.

Rosae, Rosae, Rosas

Chegou à penúltima casa e está orgulhosa. Senta-se e admira a obra. Pensa que agora é tempo de soarem as campaínhas. Tempo de receber o coração ou a espada.Tanto lhe faz. Está pronta. Se entretanto não acontecer nada, não entenderá. Não se preparou para um erro de cálculo geométrico: ter vivido em círculo fechado, rarefazendo-se à medida que...
Mas agora está exausta e orgulhosa. Não tem espaço para acolher o medo. Que se siga, pois, o amor ou a guerra ou até mesmo a morte.Tanto lhe faz. Tudo menos o mesmo do mesmo.Tudo menos o nada do qual viveu durante tantas casas.

Rosarum, rosis, rosis

Futur Proche


Hei-de guardar na memória preso o lume que me restar do incêndio das idades e ser velha até ao mais incontornável tédio.
Hei-de ver o mistério das coisas como uma lady: assistir ao rodopio de vizinhos muito tensos de ousadias e medos e de absurdas inconstâncias de orçamentos.
Não hei-de ter saudades. Hei-de ter netos e, em cada um, um lugar da minha história.

Hei-de, sobretudo, guardar-me das lições. Porque se está só nos instantes em que se agarra o mundo: brancos trabalhos de lã num silêncio profundo.

(Des)propósitos

Ficar guardada para sempre das palavras ajuízadas e do brio.
Ser só o lugar dos amigos irrepreensíveis, da mais sinuosa cultura, desta escrita para nenhuma necessidade subsistente e de um tempo infinitamente irresponsável.

quarta-feira, dezembro 29, 2004

Nós que não estávamos lá para morrer...


Luto é quando nenhum poeta consegue tirar sentido ao silêncio. Quando o mar avança, predador de terras e de homens. Quando o general que o comanda tem culpa formada nas placas, mas é inimputável. Quando um amor de mãe é tão débil quanto a força de um braço de pai. Quando não há mais preces, porque Deus morreu na enxurrada.

Tsunami é o nome da besta que tomou de assalto o sudeste asiático, o coração de um punhado de homens que clamam por milagre o estarem vivos, o pudor de todos nós que suspiramos de alívio por não termos comprado bilhete para o paraíso, a dignidade dos embaixadores que não regressaram de férias e o sentido de decência humana dos ministros que se esconderam nos escafandros da política nacional.

Nós que não estávamos lá para morrer e que não vamos lá estar para salvar ninguém, saibamos pelo menos, e ainda que em vão, saudá-los deitando a meia-haste as nossas vidas.

domingo, dezembro 26, 2004

Roubos d'Alma

Tenho no colo um sonho. Retirei-o da memória, no afã das grandes limpezas de mais uma estação que muda. Duas vezes por ano visto o meu colo deste mesmo sonho. E visto assim, deste colo que vai envelhecendo à sobrelotação dos dias, o sonho parece intacto, inofensivo, possível… Talvez seja por isso que, ano após ano, ele vai resistindo aos meus mais legítimos ímpetos de oniricídio. Deve ser por isso também – estranha alma a minha que só poupa o que consome – que ainda não consegui reclamar o seu lugar para nenhum outro.
Sonhos que começam quando ainda mal sabemos sonhá-los, é neles que se esculpem os homens invisíveis.
Neles que se perdem, numa só, múltiplas vidas.

Maldito o sonho que o meu colo acalenta, mesmo depois de o ter atirado à vida vezes sem tino e de ter sabido que não é de vida que ele se sustenta!
Maldito o homem que lhe roubou a forma e que vai e volta e que tudo transtorna como se não fosse nada com ele!
Maldita a força que lhe dei!
Maldita eu que não me interditei!