O que Fazemos dos Sonhos que Temos - I. Gavião...
...Enquanto Jovem
Segura uma caixa castanha quando regressa ao bairro.
Tem um ar sério. Não corre.
A pasta era do pai. Estava na cave com a tralha dos outros vizinhos.
Estava lá, ele foi buscá-la com a mãe.
A mãe despejou tudo no chão, o recheio.
"Só merdas velhas".
Ele não viu. A mãe é que disse.
Ele ficou a olhar para a mãe e não viu.
A mãe estava enervada. Ele estava sereno.
"A mala está aqui"- disse a mãe.
"O pai não está" - pensou ele
Mas a mala é que lhe fazia jeito, fazia falta.
Foi a mãe que disse.
Ele ouviu a mãe e não pensou se ela tinha razão.
A mãe estava ali como a mala: fazia jeito, fazia falta.
O pai não: o pai não estava.
O Gavião estuda veterinária. É bom aluno.
Tem um sentimento certo da responsabilidade.
Para o ano que vem vai ser doutor dos animais. Dizem os putos do bairro.
No bairro há cães e gatos e ratos, lagartixas, baratas.
A mãe louva a Deus o filho que lhe deu.
O Gavião ouve-a rezar dentro da cabeça.
Ouve-a chorar dentro da cabeça.
Ouve-a gritar dentro da cabeça.
Ouve tudo.
O Gavião trabalha, não rouba e é de confiança.
"Um rapaz sério". É o que diz o patrão.
O Gavião não fica orgulhoso. É a sua obrigação, não é?
Só perde tempo a ver a bola ao fim de semana na televisão e a jogar damas,
pela noite, na tasca do Silva.
Todas as noites, com o marceneiro.
Ele conta-lhe histórias da terra onde nasceu e onde era pastor de muito gado.
Como o pai.
"O Manel é como o pai do Gavião". É o que dizem as vizinhas.
Ele não diz nada.
Não sabe do que falar.
Não quer saber.
Sabe que se sente bem com o Manel marceneiro.
Até lhe conta do trabalho e das miúdas. Conversa de homens.
O Gavião tem 22 anos e o outro já tem 50.
Está tudo bem assim.
Sem confusões.
Sem surpresas.
Um dia atrás do outro, dinheiro certo.
Um canudo no fim do ano.
Dinheiro certo.
Tudo certo.
Às vezes a cerveja sabe-lhe a mijo, sabe-lhe a merda, sabe-lhe a morte.
Mas isso é só para aí uma vez por mês, quando o Silva se lembra
de ligar o mata-moscas eléctrico
e aquela coisa cospe-as para dentro do copo dele, electrocutadas.
O Gavião tem uma pasta onde carrega os livros, as ferramentas e os pós das aulas de laboratório.
O Gavião tem uma pasta do pai.
Segura uma caixa castanha quando regressa ao bairro.
Tem um ar sério. Não corre.
A pasta era do pai. Estava na cave com a tralha dos outros vizinhos.
Estava lá, ele foi buscá-la com a mãe.
A mãe despejou tudo no chão, o recheio.
"Só merdas velhas".
Ele não viu. A mãe é que disse.
Ele ficou a olhar para a mãe e não viu.
A mãe estava enervada. Ele estava sereno.
"A mala está aqui"- disse a mãe.
"O pai não está" - pensou ele
Mas a mala é que lhe fazia jeito, fazia falta.
Foi a mãe que disse.
Ele ouviu a mãe e não pensou se ela tinha razão.
A mãe estava ali como a mala: fazia jeito, fazia falta.
O pai não: o pai não estava.
O Gavião estuda veterinária. É bom aluno.
Tem um sentimento certo da responsabilidade.
Para o ano que vem vai ser doutor dos animais. Dizem os putos do bairro.
No bairro há cães e gatos e ratos, lagartixas, baratas.
A mãe louva a Deus o filho que lhe deu.
O Gavião ouve-a rezar dentro da cabeça.
Ouve-a chorar dentro da cabeça.
Ouve-a gritar dentro da cabeça.
Ouve tudo.
O Gavião trabalha, não rouba e é de confiança.
"Um rapaz sério". É o que diz o patrão.
O Gavião não fica orgulhoso. É a sua obrigação, não é?
Só perde tempo a ver a bola ao fim de semana na televisão e a jogar damas,
pela noite, na tasca do Silva.
Todas as noites, com o marceneiro.
Ele conta-lhe histórias da terra onde nasceu e onde era pastor de muito gado.
Como o pai.
"O Manel é como o pai do Gavião". É o que dizem as vizinhas.
Ele não diz nada.
Não sabe do que falar.
Não quer saber.
Sabe que se sente bem com o Manel marceneiro.
Até lhe conta do trabalho e das miúdas. Conversa de homens.
O Gavião tem 22 anos e o outro já tem 50.
Está tudo bem assim.
Sem confusões.
Sem surpresas.
Um dia atrás do outro, dinheiro certo.
Um canudo no fim do ano.
Dinheiro certo.
Tudo certo.
Às vezes a cerveja sabe-lhe a mijo, sabe-lhe a merda, sabe-lhe a morte.
Mas isso é só para aí uma vez por mês, quando o Silva se lembra
de ligar o mata-moscas eléctrico
e aquela coisa cospe-as para dentro do copo dele, electrocutadas.
O Gavião tem uma pasta onde carrega os livros, as ferramentas e os pós das aulas de laboratório.
O Gavião tem uma pasta do pai.