sexta-feira, novembro 26, 2004

Jam Session


Olha, Ruiva, deixaste-me a alma a meio caminho e o sax do Miles está para ali a gritar que eu tenho a culpa.Ele há-de ser o ser do sax, mas eu sei quem puxou a cadeira contra a minha e me serviu, dum trago, um valente conhaque de segredos.
Pois é, Ruiva, o Miles entra em lamento fingido com esta fuga minha à mea culpa, mas vai resmungando, stacatto, que a miúda é nova, que não sabia senão dizer da alma o que sentia e que eu sou velha de saber que a ordem natural das coisas pedia um slow motion a ouvir a garota a contar e mais não.
O gajo é bom, o Miles, tem um swing fundo que me desarma mais do que eu a mim própria, mas ele não sabe que eu não me desatento de querer o mundo, perfeito em cada assento e, por aqueles dias, o lugar era para ti.
Se conheço Rembrandt, miúda?Troco por Vermeer.
E apesar do esforço que me viste, sem pejo passo políticas e relações, pego nas frágeis ondas da Virgínia Woolf, loba d'emoções.
A vida, Ruiva - tu já sabes - não é, em nada, um filme francês. Não há Rivette, nem Truffaut maior que nos dirija: nada mais que a puta do acaso e cada dia.
Mas havendo de transcorrê-lo, o tempo, valham-nos os encontros nos transcursos e o pick-it here e o pick-it there.
Com a sorte pela frente, algum faz de conta que sim e as luzes do nosso contentamento, pode ser que, eventualmente, uma noite ou outra, alguém nos dê a jam session que queríamos que fosse inteiramente e para sempre.
Entretanto, por acaso, não tens por aí chá de jasmin?

quinta-feira, novembro 25, 2004

O Efeito do Eco


Não é pelas palavras que nos entendemos.Não há verbos que refaçam os nossos passos.Nem nomes a silhueta das coisas.Tão pouco essas borboletas ridículas a que chamamos adjectivos são mais do que peneiras de uma gramática que falsifica a vida.Passamos o tempo a contar-nos histórias, a tentar descobrir menos o que de verdade existe no discurso do outro, que a agarrar-lhe o que nos convém ouvir, o que nos consola, o que nos mente e, mentindo, nos afirma. Mesmo que a conversa seja tão distante de nós como do eu o tu, ainda assim lá estamos a inventar coincidências, a adivinhar sentidos subliminares que possam convir à nossa rotunda existência.
E o outro?Quanto do que ele diz é holográfico, quanto coreográfico, quanto o luxo que não temos no lixo que é a nossa vida, solitária e cruel?
É, portanto, mais do que evidente que queiramos conversar, sendo mais do que evidente que nunca nos entenderemos, pela mais do que evidente das razões: não estamos cá para isso. Se estivessemos, onde iriam já as nossas palavras?
Não é pelas palavras que nos entendemos.Apenas acordámos que sim.
Até porque o silêncio tem outros e muito mais perigosos ecos.
Dito isto, que há de diferente entre o homem que dorme sobre o mármore da avenida e o Sr. Vuitton, tu, eu ou qualquer um de vós? Seremos sem-abrigo com casa?

quarta-feira, novembro 24, 2004

dExistenz


Desisto. Vem daí o dê d’hoje. Dos dias em que se é mulher no mais escatológico sentido do termo. Monstro que ainda pode parir, mas não pare e que perde - nessa putativa condição - o corpo e a alma.
Hoje sou um vegetal e trocava o meu por qualquer corpo. Sem restrição de cor, credo, raça ou faixa etária.
Só com uma pequenina condição: que fosse o de um homem no activo.
Não me levem a mal, minhas senhoras: não é discriminação. É que tenho algumas conversas d’homem para homem a pôr em dia; e uma lição a dar, com dois pares de anos de atraso, a uma morena convencida que a amizade é um passaporte de acção ilimitada e consequências nulas.Só mesmo com uma G3 em riste, não vos parece, cavalheiros?

Eu avisei: M de mulher tem o seu dê de monstro.

Mas falamos depois, porque hoje é dia dExistenzia e o sem abrigo disse-me que a bondade do Sr. Vuitton não é mais do que uma forma encapotada de investimento imobiliário na vida futura.Sagaz é o entendimento de quem não perde tempo.

A Génesis do Princípio do Poder


"Em toda a terra havia somente uma língua, e empregavam-se as mesmas palavras.Emigrando do oriente, os homens encontraram uma planície na terra de Sennaar e nela se fixaram. Disseram uns para os outros: "Vamos fazer tijolos, e cozamo-los ao fogo". Utilizaram o tijolo em vez da pedra, e o betume serviu-lhes de argamassa. Depois disseram: "Vamos construir uma cidade e uma torre cuja extremidade atinja os céus. Assim, tornar-nos-emos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a face da terra". O Senhor, porém, desceu, a fim de ver a cidade e a torre que os filhos dos homens estavam a edificar. E o Senhor disse: "Eles constituem apenas um povo e falam uma única língua. Se principiaram desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem todos os seus projectos. Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não se compreendam uns aos outros." E o Senhor dispersou-os dali para toda a face da terra, e suspenderam a construção da cidade. Por isso, lhe foi dado o nome de Babel, visto ter sido lá que o Senhor confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra, e foi também dali que o senhor os dispersou por toda a terra" in Bíblia Sagrada, Génesis,11,1.

Isto transcrito, reconheçam os que escrevem que mais não fazem que cumprir esse desígnio impossível de conseguir comunicar; os que governam, que apenas repetem o gesto d'Aquele que os quis dividir para reinar; o que permanece deitado na pedra da Avenida que a Torre ter-lhe-ía dado jeito para suportar o Inverno mais perto dos Homens.

Replicants

Desengana-te: não há maré que te leve de volta ao p(P)orto onde nasceste. Onde mataste e morreste. De onde partiste.
Não há marinheiro como o primeiro, porque não és tu agora o que eras então: pura energia, protentosa convicção.
Os locais por onde andas, as gentes com quem te cruzas que são senão réplicas de um cenário que colhia o potencial de brilho e de promessa na proporção directa da sua imaginária natureza?

Deixa-te de fitas: caminha como os peregrinos com os pés assentes no cheiro evidente do alcatrão, um pedaço de árvore seguro na mão que te for mais fiel em força, uma canção entre dentes para que não assustes os pássaros (o que te resta do céu) e não adormeças na marcha (o que te sobra de ser) e apenas duas memórias que o caminho é longo e não se quer pesado o fardo: uma de alegria perfeita, pode ser d'infância (se ela assim foi), pode ser de mãe (se o filho se vingou da vida); outra de treva inegável, de vómito autêntico, de anéantissement perverso, pervertido, péssimo. A primeira tornará ligeiro este último caminho.A segunda preservará, intacta, a vontade de não o arrepiar. E de nunca, por nunca, cair na tentação da fé.

domingo, novembro 21, 2004

En garde!!!

Hoje, como ontem, o sem abrigo do Sr.Vuitton ficou pelas avenidas e eu não lhe pus a vista em cima. Às vezes a distância tem efeitos perversos. Como este: começar a escrever-se sobre o próprio umbigo.Seja.
Assim, como assim, o Inverno está por perto e há que tomar as devidas precauções para proteger a alma.
A receita é simples: prendam-na!

O Inverno só serve de apeadeiro ao corpo. Como um senhorio que resolvesse cobrar à sua própria sombra as rendas de um Verão inteiro (ou será influência da direita liberal?), o corpo exige o monopólio dos agasalhos.

Enquanto o vemos a devorar laranjas e legumes, laticínios e carnes brancas, a constituir defesas, a alma estupidifica.
Registam-se-lhe, então, saídas a céu aberto, com o que sobra do guarda-roupa de Verão.
Declara, a inepta, que vai encontrar-se com o sol. O sol de Inverno, alguém acredita?!

Enquanto o corpo se diverte, é assim: no Inverno é a alma que tirita.

Tomemos, pois, nesta estação, medidas contra o grande general: comamos à fartazana como o peru que - se não sabe parece que adivinha - vai morrer no Natal.

E salvem-se as almas que a guerra não é palco para crianças, nem minudências femininas!